ANPD como autarquia federal: o que muda para a proteção de dados no Brasil?

Medida Provisória editada pela Presidência da República será analisada pelo Congresso.

Por FABRICIO DA MOTA ALVES 

 

O presidente da República editou na segunda-feira (13/6) a Medida Provisória nº 1.124, cujo principal objeto é a transformação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em autarquia federal de natureza especial. 

A proposição foi enviada à Câmara dos Deputados, onde inicia o processo legislativo previsto na Constituição Federal, devendo ser aprovada por ambas as Casas do Poder Legislativo em até 60 dias, prorrogáveis por igual prazo, sob pena de perder sua eficácia, isso se não for rejeitada durante os debates parlamentares. 

Com a publicação agora em junho, o prazo constitucional previsto para o Congresso deliberar sobre a MP deverá ser alargado um pouco além disso, uma vez que será suspenso durante o recesso parlamentar, que ocorre entre os dias 18 e 31 de julho. 

Vale dizer que, pela contagem oficial do prazo, o Congresso tem até o dia 24 de agosto para aprovar a MP ou, então, prorrogar, por mais 60 dias sua validade, o que poderá levar a proposta a ser adotada somente após o primeiro turno das eleições deste ano e já próximo ao segundo turno. Se for considerado ainda o prazo para o presidente da República sancionar ou vetar eventual projeto de lei de conversão, a futura lei poderá ser editada após o encerramento do processo eleitoral brasileiro. 

Ainda assim, até que se chegue a esse cenário, o Congresso deverá, antes, debruçar-se sobre a medida, podendo modificá-la através de emendas parlamentares oferecidas à MP. Também caberá a ambas as Casas deliberar sobre os aspectos formais da proposta, analisando sua constitucionalidade, juridicidade e adequação orçamentária. 

Aliás, o primeiro obstáculo a ser superado para que a ANPD se torne efetivamente uma autarquia federal de natureza especial é convencer o Congresso sobre o atendimento dos requisitos de urgência e relevância, que são pressupostos constitucionais para edição de medidas provisórias. 

O Supremo Tribunal Federal (STF) já possui jurisprudência sólida, que sustenta ser o requisito da relevância de natureza política, próprio do juízo de conveniência tanto do presidente da República, quanto do Congresso Nacional, consubstanciado pelo interesse público e pela necessidade social. 

Porém, o requisito da urgência tem sido submetido mais recorrentemente ao controle judicial da Suprema Corte, porque qualificado: admite-se tanto em caráter preventivo como reparador, definido essencialmente pelo momento da atividade presidencial normativa. 

E é o caso presente: trata-se, sim, de medida urgente e relevante. 

Além do comando legislativo previsto na própria LGPD, que, em seu art. 55-A, § 2º, estabelecia a transitoriedade da natureza jurídica da ANPD e abria o caminho para sua transmutação em autarquia especial, é importante observar que a ANPD está em franca operação de monitoramento e fiscalização, além de já promover, desde o início de seus trabalhos, a regulamentação da LGPD. 

Sua atuação independente, ainda que a lei tenha estabelecido apenas caráter técnico e decisório à sua autonomia administrativa, acabou se tornando uma imperatividade, especialmente em face dos desafios institucionais que o órgão poderia enfrentar a partir do momento em que passasse a autuar e punir tanto o poder público, como entidades privadas, tais como empresas, organizações da sociedade civil, condomínios e agremiações políticas, para citar alguns. 

Além disso, há ainda o pleito do Brasil para ingressar na OCDE, o que demanda uma mudança no sistema regulatório nacional de proteção de dados, especialmente no que toca à presença de um órgão regulador efetivamente autônomo. 

Outro ponto relevante é o reconhecimento do Brasil como país adequado, nos termos do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, fonte em que se baseou o legislador brasileiro. Em meio a um processo de regulamentação sobre a transferência internacional de dados, pela ANPD, faz todo sentido avançar, passo a passo, rumo à direção de um cenário de declaração do país como adequado em proteção de dados pessoais. 

Por fim, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 115, que tornou a proteção de dados um direito fundamental, passou a ser ainda mais urgente e necessária a mudança da natureza jurídica da ANPD, especialmente para conferir maior segurança jurídica e administrativa ao órgão: porque, afinal, a ANPD é o órgão da União a quem compete materializar o exercício da competência administrativa prevista no art. 21, inc. XXVI, da CF, ou seja, é através da ANPD que a União deve “organizar e fiscalizar a proteção e o tratamento de dados pessoais”. 

Note-se que o processo sancionador, que cabe à ANPD impulsionar sempre que constatadas infrações à LGPD, está na iminência de ter seu arcabouço normativo completo: falta pouco para a edição do regulamento de sanções e metodologias que estabelecerá a dosimetria e formas para o cálculo da pena de multa. 

Tivesse sido mantida na condição de órgão da Presidência da República, pertencente à administração pública direta, a ANPD poderia enfrentar questionamentos jurídicos e, consequentemente, ter suas punições administrativas anuladas em processos no âmbito da Justiça Federal, provocados especialmente pelas Procuradorias federais, estaduais, distritais e municipais em todo o país, na defesa os entes públicos sancionados. 

Diante de tantos cenários convergentes a um ponto relevante do sistema regulatório, fica evidente o atendimento dos requisitos da urgência e relevância na avaliação do Congresso Nacional para a edição desta MP. 

Já quanto ao mérito da proposta, as inovações não são nada singelas: a mudança da ANPD para autarquia federal de regime especial a equipara a outras entidades de natureza similar, como as agências reguladoras e o Banco Central do Brasil. 

Preserva sua organização administrativa e sua autonomia, reforçando a estabilidade institucionais de sua diretoria, que já têm mandato e são escolhidos após sabatina pelo Senado Federal, e o funcionamento de suas estruturas internas. Aliás, a única alteração relevante nesse aspecto é a transformação da assessoria jurídica em Procuradoria, compatibilizando com outras estruturas federais. 

Também dota a ANPD de personalidade jurídica de direito público interno, compatibilizando com a legislação civil (art. 41, inc. IV, CC), dando-lhe inclusive capacidade processual para acionar o Poder Judiciário na defesa de direitos coletivos em sentido amplo e difuso, podendo mover ações civis públicas (art. 5º, inc. IV, Lei nº 7.347/85). 

Esse talvez seja dos reflexos mais relevantes em termos práticos: agora, a ANPD passa a ter legitimidade processual para promover ações judiciais na defesa dos interesses da sociedade, em matéria de proteção de dados que lhe é afeta, inclusive ajuizar medidas cautelares, como ações de busca e apreensão de bens e documentos, de suspensão de atividades de tratamento de dados pessoais, até de afastamento de dirigentes e, por que não, de encarregados pelo tratamento de dados pessoais. 

Por meio dessas ações, a ANPD poderá pleitear, em juízo, reparação de dano moral coletivo, além de promover a exequibilidade do cumprimento de sanções administrativas decretadas pela entidade após findo o processo administrativo sancionador contra entidades públicas e organizações privadas. 

Importante destacar que não se aplicam as robustas regras da nova Lei das Agências Reguladoras à ANPD, uma vez que esta, embora se torne autarquia de regime especial, não está sendo transformada em uma agência. 

Provavelmente, quando muitos sustentaram a importância da autonomia administrativa da ANPD, podem não ter enxergado essas novas capacidades postulatórias, típicas da estrutura processual e material do direito regulatório e administrativo brasileiro. 

Aliás, deve-se ter em conta que, agora, a nova autarquia tem plenas condições jurídicas e administrativas de instituir, no futuro, unidades regionais em todo o Brasil, bastando, para isso, ter condições financeiras e orçamentárias, aproximando a ANPD de todos os espaços territoriais, o que poderá levar a uma atuação regulatória e até mesmo contenciosa administrativa ou judicial bastante expressiva. 

Mas fato é que, com a mudança da ANPD para autarquia especial, somente perdem aqueles que ainda insistirem em negligenciar ou ignorar o cumprimento das regras de proteção de dados. 

Porque as condições para uma atuação robusta e profícua estão postas. 

NOTA: Texto gentilmente cedido pelo autor e originalmente publicado no JOTA em 11/06/2022 

 

FABRICIO DA MOTA ALVES – Advogado e professor, sócio coordenador de direito digital e proteção de dados no Serur Advogados